domingo, julho 10, 2005

Cavalleria Rusticana

Nesta tarde fria de domingo, o Inverno chega para nos arrepiar do alto da cabeça à planta dos pés, o frio entra sem ser convidado e atravessa qualquer brecha que possibilite a sua estadia, me encontro enrolado no edredom, que me serve de capa contra o sinistro e gelado vento que se aproxima, e enquanto vos escrevo com mãos trêmulas e de pelos em pé, ao mesmo que tempo que redijo este texto, algo muito bom está a mexer com a minha alma, algo que invade os ouvidos e chega até o mais profundo abismo do coração. Por um momento meu maior desejo é fechar os olhos e deixar que minha imaginação atravesse os limites do tempo e percorra o túnel que me leve a algum lugar do passado, mas ao fazer isso perderei toda a noção do presente e não poderei registrar os momentos de grandeza de minha alma. Pois bem, enquanto as palavras ganham forma e vida nesta tela virtual, a minha mente já vagueia pelas auroras da vida, olhando as estrelas que são senão os espectros de um passado longínquo.
... Parei por um minuto e cerrei as pálpebras... Ao abrir os olhos tudo voltou como era há muitos longos anos, não mais estava eu diante da caixa do futuro redigindo palavras virtuais, não mais mirava da janela de ferro a paisagem de um dia Invernal do século vinte e um, no décimo dia do sétimo mês do ano vindouro de dois mil e cinco, não mais ouvia, num fone vívido e pulsante a mesma música que agora a percebo em um fantasmagórico espírito do som, trazido para mim com o vento marítimo deste lugar distante no tempo.
Agora nem sei mais o meu nome, não sei quem sou, ou o que estou fazendo neste lugar que traz o romantismo marcado nas antigas árvores que solitárias crescem há muitos séculos nas colinas que cercam a vila que me encontro, trazem consigo monogramas de casais apaixonados que sob suas copas juraram amores para além da eternidade, agora me encontro neste lugar que me faz querer ficar para sempre nestas paragens diferente de tudo o que os meus olhos jamais viram.
Não mais confuso no vagar da minha mente insana, os meus olhos não podem me iludir quanto ao que estou vendo e sentindo, eles não podem enganar a minha mente, sei que desde então estou perdido no passado, perdido talvez não, talvez eu tenha me encontrado e agora já não mais chorarei como se fosse um estranho no ninho, como alguém que perdeu o rumo e em meio à forasteiros não consegue achar o caminho para casa. Escrevo e escrevo sem parar, para não esquecer de registrar o momento no qual vivo agora.
A alcova em que me encontro me aparece um tanto desprovida de luz, talvez não fosse o frio lá fora eu abriria a velha janela de madeira que mira a vista das colinas azuladas no horizonte, o único calor que sinto aqui dentro é o que provem da lareira que abraça todo o ambiente aconchegante com o seu calor abrasivo, duas velas de sebo me iluminam o papel e a pena que me servirão de testemunhas da jornada que trilharei em suas páginas, minha vida agora se resume nestas linhas que surgem aos poucos na timidez das minhas mãos, na frialdade do Inverno, grande senhor que castiga àqueles que tanto gozaram da vida no verão de suas vidas, sim escrevo a história que talvez seja a minha verdadeiramente, o marco que iniciou a volta da minha alma para a sua verdadeira aurora.
A sinfonia, ainda a ouço, o som que cativou os meus ouvidos, sim lá está ela, vagueando pelos ares, sendo executada em algum teatro, a ópera está animando os presentes espectadores, sim ela pode chegar até a mim, mestre Mascagni é um gênio e tanto, Cavalleria Rusticana, que bela música, que melodia, posso sentir as notas sendo abafadas pela madeira pesada que sufoca o som que polidamente chega até a mim, se não fosse o malvado Inverno eu abriria a janela e deixaria a música invadir o meu quarto escuro, neste sobrado em uma rua marginal qualquer. Como o Inverno é gelado e frio, não tem vida nem calor, não amolece ao som da melodia e abafa a sinfonia que lhe é demasiadamente desconhecida.
De repente as notas batem na janela do quarto, pedem, imploram para que eu as deixe entrar, o vento as joga contra as paredes e elas choram, apaixonado pela canção, um grande sentimento de amor e compaixão se apossa de mim, não mais podendo resistir, minhas mão abrem as pesadas madeiras de lei, o vento invade todo o interior e as notas entram e acham abrigo na alcova que é minha alma. Com os olhos cerrados e sem noção do espaço, ao som da sinfonia que é em si a magia que me toma por um escravo, danço consigo, feito um louco grito de êxtase, esqueço mais uma vez onde estou, como estou, esqueço quem sou, mesmo não sabendo quem realmente sou.
A música termina, a ópera se dispersa nos últimos tons pelo vento austral, quando me dou por mim, tudo está acabado, cessou o fogo da lareira que me fornecia calor, as páginas que escrevia com tanto zelo, se fora com o vento, a música terminara e deixara consigo a solidão e o estrago, o vento arrancou tudo de mim, até a sanidade. Lutando com todas as forças, fecho a janela, o cansaço me vence e adormeço na escuridão do comodo frio...

...

O barulho insuportável do relógio despertador me acorda e de volta a realidade estou em mim. Percebi que tudo não passara de um sonho, tão cansado estava que acabei dormindo em cima do teclado do computador, acordei assustado e com dor de cabeça, pensei, talvez tudo tenha sido uma viagem que trilhei até os mundos que povoam a minha alma, às terras do meu coração, tudo tenha sido a viagem ao interior da minha existência...

Nenhum comentário: