domingo, outubro 30, 2005

Carlos!

Imagem daqui!

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.


O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.


O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.


Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.


Eu não devia te dizer
mas essa lua mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade
De Alguma poesia (1930)

quarta-feira, outubro 26, 2005

No title

Vomitar, colocar para fora tudo que está entalado na garganta.
Gritar, fazer-se ouvir a voz que perde força a cada dia que se passa;
Bater, socar o corpo que se encurva sob o peso das tribulações;
Pensar, fazer valer os conceitos que a vida impõe sobre todas as coisas;
Revidar, pois nem sempre o modelo que se segue é o verdadeiro e certo;
Quebrar, o sigilo e as regras, as exceções e os padrões;
Ver, enxergar através do escuro a silhueta dos medos e enfrentá-los;
Cantar, exercitar as cordas vocais, amaciar a alma, protestar, dizer não;
Enlouquecer, quando se perde a vontade de continuar são;
Chorar, quando a música vier e deitar o seu espírito sobre nós,
Ou, quando a noite chegar e o mundo ficar escuro demais;
Vibrar, quando tiver alguém te esperando em casa;
Rir, quando os amigos surgirem sem responsabilidades;
Viver, cada dia como se fosse um último crepúsculo e,
Ter a esperança que o sol irá alvorecer mais uma vez.

sábado, outubro 15, 2005

espe(ctr)(lh)os

Não sei como cheguei aqui, realmente não tenho ciência de como vim parar neste lugar, escurecido pelas velhas imagens do passado. Dei-me com uma sala repleta de portas e janelas, espalhados por todos os lugares, e essas portas dão para outras salas sucessivamente , e em cada uma delas se encontrava um adulto, ainda muito por amadurecer, despenteado e descalço feito criança, com os seus olhos arregalados a ver fantasmas, espectros de outras vidas, outras histórias que poderiam ter dado certo. Eles me imitavam em tudo, cada passo e gesto, ritmicamente, aquilo me deixava nervoso a ponto de chorar, não tive medo e nem vergonha, como há muito tempo, portanto rasguei-me em gostosas lágrimas, tão intensa era a angústia e a tristeza, e ao mesmo tempo choramos todos nós, aquilo me acalmou, vi que não estava só, talvez juntos poderiamos achar uma solução para saírmos deste labirinto insondável, havia muitos na mesma situação que a minha, então ri consolado e, logo percebi o sorriso no rosto de cada um, mas só o meu riso era ouvido, tentei argumentar, mas só a minha voz era ouvida, soava como um eco, aquilo me fatigou. Fui me dar conta de tudo quando agachei-me ao chão e recolhi os meus óculos, então percebi que estava só numa grande sala cheia de espelhos, que o choro de muitos era o meu somente, que a felicidade de todos era minha somente, foi aí que me senti cada vez mais só. Agora já não sei mais como sair daqui.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Criança

Levantou-se pela madrugada, os olhos ardendo e os pelos eriçados de quem acaba de ter um choque com a temperatura adversa do seu repouso. Tomou um café preto e amargo, não se podem ter regalias, açúcar é só para amenizar o amargor do café, comeu um pão crioulo com a maior satisfação, pois não é para menos, neste dia é tomado um primo café da manhã.
O dia está diferente, um vento gostoso de primavera paira no ar, o céu azul denuncia um belo dia de outubro, na meia estação quente que afaga o coração.
Hoje, como todos os outros dias, foi trabalhar na lavoura com o pai, cortar cana era para ele como olhar o céu e visualizar as nuvens de vários formatos, ver, através do azul infinito, castelos no ar.
Poderia brincar um pouco, só hoje, após as horas de sol a pino a cumprir a sua fatigada sorte de menino pobre, sem direitos a ser criança em tempo integral, hoje poderia ver o circo e rir com as trapalhadas do palhaço, que carrega em si a obrigação de arrancar os sorrisos reprimidos do rosto que possui tantos sulcos, por que hoje é o dia das crianças, pudera todos os dias ser! Um Dia das Crianças, tão pouco o é, comparando com os outros restantes que forma um ano de dura vida.
Ele tem apenas onze anos, mas carrega em si a responsabilidade de trazer o sustento para sua casa, mão de obra barata, cai nas mãos de pessoas que roubam a sua capacidade de ser criança, jamais freqüentou uma escola, não tem a mesma facilidade de cravar um lápis nas mãos do que pegar uma foice para cortar a cana, jamais carregou nas costas uma mochila com cadernos e livros, mas já sustentou o peso da vida, apenas na tenra infância, carrega em si a dor de ser um escravo da pobreza e fazer parte de um denso ciclo da miséria.

...
Imagem daqui!

Eu sei, é bonitinho, “Dia das Crianças”, quem foi mesmo o inventor desta data tão engraçadinha? Toda criança deve ter o direito de ser criança, e qual é o dever do Estado? Garantir isto! O que se tem para comemorar? Não consigo enxergar um futuro tão grandioso assim, pois se é a criança o futuro do mundo!!! Como explicar tantas crianças morrendo de fome, vivendo com escassas condições de vida, vítimas da miséria, da doença e do descompromisso dos governos? Como explicar tantas crianças sendo exploradas e molestadas, sendo roubadas e renegadas, pois é um crime tirar da mesma, o direito de ser criança, como e porque comemorar esta data?
Lembro-me uma vez que estava caminhando no centro, aqui em São Paulo, na região da Vinte e Cinco de Março, e me deparei com uma cena que fica até difícil de escrever, uma criança sentada num batente de um prédio abandonado e antigo, chorava aos prantos, as suas lágrimas desciam sem cessar, ela estava toda suja e carregava nas mãos um material para vender, não consegui deixar de a olhar por um bom tempo, fiquei arrasado a minha vontade foi de chorar também, e lamentar a triste sorte daquela criança! Creio que jamais esquecerei o seu rosto...
Bom... Desejo que algum dia possa ser realmente um feliz Dias das Crianças! E que nós, também, resgatemos a criança reprimida que há dentro de nós.

quinta-feira, outubro 06, 2005

Querer

Não sei como começar, talvez eu nem devesse, mas... Não é que já comecei?! Poucas palavras, muitos pensamentos, mas nenhum que dê vazão aos sentimentos que quero rasgar.
Queria escrever feito um doido, registrar desde o desabrochar de uma rosa até o seu murchar, quando as suas pétalas se lançam ao chão. Queria muitas coisas, mas não tenho nenhuma, nem metade, talvez um quarto sem janela e sem porta onde eu encerro meus sonhos sufocados pelo medo e pela incerteza.
Queria ter uma revolta, uma simples rebeldia, mesmo que sem causa nobre ou aparente. Talvez eu quisesse ser um ator e fazer um filme, para nele registrar a minha existência. Queria adorar a matemática, resolver cálculos e expressões com a maior naturalidade, quanto a enveredar pelos caminhos da lingua, e ler poesias de Drummond ou as obras de Somerset Maughan.
Queria ser eu, ao mesmo tempo em que renego a minha existência furada e falida, talvez eu me entendesse mais se fosse o outro, o que fica do lado de lá do espelho, aquele que se mostra para mim como o mesmo o é, ou o que sou, considerando que somos a mesma pessoa, pelo menos, ainda penso assim.
Queria não ser canhoto, e ser destro como todas as pessoas normais, isso sim seria uma satisfação. Queria não achar conforto em Chopin, Beethoven, Satie ou Mascagni. Queria não ter olhos azuis, “você usa lentes?”, ou “seus olhos são muito bonitos!”, queria que meus olhos fossem negros como noite sem luar.
Queria muitas coisas, mas nada me restou, além do que mil perguntas sem respostas, e mil respostas sem perguntas.
Ah! Meu Deus! Por que não atrasaste o nascer da minha aurora, se sabias que eu não seria feliz vivendo num mundo entre seis bilhões de estranhos?

“Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.”
(Drummond)