quinta-feira, julho 28, 2005

Poesia de Carlos

Carlos Drummond de Andrade
RESÍDUO

De tudo ficou um pouco
Do meu medo. De teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
Ficou um pouco.
...
Ficou um pouco de luz
Captada no chapéu.
Nos olhos de rufião,
de ternura ficou um pouco
(muito pouco)
...
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
...
Ficou um pouco de tudo
nos pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco de ruga
na vossa testa, retrato.
...
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
em pouco de mim algures?
no consoante?
no poço
...
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
...
De tudo fica um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
do vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver...de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
...
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
...
Mas tudo, terrível, fica um pouco.
E sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço do cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
...
Fazia tempo que não postava uma poesia qualquer, assim, simples e verdadeira, pois quem não deixa um pouco de si em tudo que faz? Ou não carrega o mundo nas expressões do rosto e nas linhas que marcam a experiência que a vida nos impõe? Carlos Drummond é o poeta brasileiro que mais gosto, pois suas poesias são modernas e se contextualiza em qualquer época, pois são simples e possui valores universais!

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