terça-feira, abril 05, 2005

A Sombra

O atrito do asfalto e do piso da calçada com o sapato apertado e irritadiço fazia um pequeno barulho que quase se passava desapercebido por todos, menos por mim, espírito errante, um passante pelo mundo que veio a vagar em busca de algo que nunca tive em vida, ainda não descobri, mas descobrirei, de uma forma ou de outra. Eu sou uma sombra que nasce do foco da luz num determinado eixo do muro pichado, ou do asfalto molhado pela fina garoa. Sou a sombra de alguém que me apego nas ruas do grande e vasto mundo, enfim, sou o que você quiser chamar, contanto existo.
Descendo a ladeira eu acompanho um traunsente, um garoto de dezessete anos, era num sabado, peguei-o num dia não tão bom quanto eu esperava, mas a vítima era a que eu batesse o olho, logo o tal pedestre fora o primeiro. Num momento ele começou a andar de uma forma maquinalmente, lenta e compassada, suas pernas o levavam, sem controle algum sobre o seu caminho o rapaz ia ... ia. Cantando alguns trechos de músicas, e não se dava conta das pessoas que passavam e o olhavam: "Meu coração, não sei porque / Bate feliz quando te vê / E os meus olhos ficam sorrindo / E pelas ruas vão te seguindo / Mas mesmo assim foges de mim ..."
Descia ladeira, virava esquina, subia morro e o descia. Seus olhos, azuis como crisântemos de mesmo tom, estavam murchos como os mesmos em véspera de finados, seus ombros baixos denunciavam uma falta de compostura como a de um ramo de trigo, curvado não sei para quem, sua voz que ainda cantarolava, agora uma mistura de nada com nada, ficava cada vez mais baixa, somente eu, sua sombra, a ouvia. Seria tristeza? Mas o que é a tristeza? Tristeza é quando você não quer ouvir uma só palavra, mas adoraria que alguém as falassem? É quando todos ao seu redor parecem estar felizes, menos você? Seria quando você canta uma canção baixinho para que ninguém perceba as lágrimas que lutam e relutam em descer pelo seu rosto? Uma ambulância grita desesperada pela via atarefada, nem isso o faz despertar, uma criança pede à ele uma moeda, e muito menos isso o desperta, é como se a sua vida fosse um mundo a parte, um mundo paralelo em que esporadicamente visitava, e sempre que acontecia isso, algo o fazia lembrar que a rede que fizera sobre si era mais segura, que nunca iria rebentar os fios grossos que tecera em volta dos seus olhos, peito, mãos e pernas. Como era cômodo sua alma envolta do estofo de seu travesseiro, como era quente a sua cama e, gostoso o seu quarto. Sim, seu mundo era o ostracismo do conforto da sua casa, dos afagos da sua ama, que o convidava para dormir sempre que se vira ameaçado em sair do seu mundo sem nome.
Estava me cansando de acompanhar um rapaz, em plena flor da idade, com seus olhos azuis crisântemos mirando o vácuo, quando tanta coisa há em sua volta para olhar, custava pelo menos que ele travasse uma conversa comigo, sua sombra que o acompanhava em sua "Via Sacra". Totalmente cansado, resolvi encarar outra pessoa menos complicada, mas para minha decepção, todos nessa metrópole estavam estressados. E o meu pobre traunsente era simplesmente mais um estafado nesta cidade que de tão cansado não percebia a mágia que luta em perpretar a sua realidade moderna, tristemente o mundo fantástico se fecha nas brumas, nos portais onde as terras mágicas se encontram!

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